01 | Dossiê

A+ A-

A Terra Brasilis como Terra Incógnita

Hoje delimitada e conhecida, a região correspondente à fronteira entre o Brasil e os países limítrofes já foi classificada por muito tempo como uma “terra incógnita”, um local desconhecido e inexplorado do ponto de vista daqueles que ocupavam e mapeavam o território colonial. A expressão “terrae incognitae” já aparecia em mapas da antiguidade, como no famoso mapa mundi de Ptolomeu, mas ganha notoriedade na cartografia europeia do século XVI, quando muitos espaços passam a ser representados não apenas como desconhecidos, mas como áreas “a serem exploradas” (Hiatt, 2008).

Como o “canto das sereias” (Wright, 1947), as terras incógnitas impeliram o homem a explorar e colonizar áreas consideradas “longínquas” e “misteriosas” que, simultaneamente, representavam perigos e oportunidades, ameaças e riquezas. Afastada das principais linhas de povoamento no continente e situada “entre” as colônias pertencentes às potências ibéricas, a região onde se encontra atualmente grande parte das fronteiras políticas brasileiras foi constantemente caracterizada como uma área desconhecida no passado colonial.

A quantidade de mapas europeus do século XVI e XVII representando o Brasil como um litoral detalhado e um interior oculto ou “não descoberto” evidencia as limitações de conhecimento territorial dos exploradores. Um dos exemplos mais famosos deste exercício de imaginação é o mapa feito por Pedro Reinel e Lopo Homem em 1519 (Fig. 1), que revela um claro contraste entre o litoral explorado e nomeado com topônimos europeus e o interior desconhecido, preenchido pela fauna, flora e população nativa. Ao analisar este mapa, Jacob (2006) chama a atenção para a forma única de combinação entre descrição e narrativa, representando a dinâmica do encontro através de uma fronteira simbólica situada no litoral recém-colonizado.

Figura 1: Terra Brasilis. 1519, Tesouro dos Mapas. Instituto Cultural Banco Santos, 2000.

Neste momento, a “Terra Brasilis”, como nomeada no mapa, era “Terrae Incognitae”, o que dava “carta branca” para os cartógrafos preencherem os “espaços vazios do mapa” (Safier, 2009). O El Dourado, a Ilha Brasil, as Guerreiras Amazonas e muitos outros “mitos” ocupavam o interior do continente nos mapas no período de expansão das colônias ibéricas. No mapa acima, vemos um pequeno dragão no interior do território e um gigante ao sul do continente, que segundo muitos relatos da época eram comuns na região Patagônica. Contrastando com o interior mitológico, o mar aparece repleto de caravelas, brasões e bandeiras, um espaço claramente dominado e riscado pela geometria das linhas de orientação das cartas portulanas.

Mas como se deu o processo de exploração, mensuração e representação cartográfica desta terra incógnita? Teria o interior do continente virado totalmente cógnito a partir das expedições e mapeamentos desenvolvidos no século XVIII? A idéia de que as fronteiras brasileiras foram construídas através da heroica exploração do interior da América do Sul, com a ação de “exploradores e colonizadores destemidos”, deixará marcas profundas na imaginação sobre as fronteiras no país. Penetrando o interior do continente e tornando “cógnitas” as terras desconhecidas, os bandeirantes teriam promovido uma verdadeira “marcha para o Oeste”, constantemente vangloriada pelos militares brasileiros (Soares, 1973).

Como aponta Machado (1989), o século XVIII foi realmente um período marcante, quando se construiu “a noção de muro-fronteira, isto é, de cercado nacional”. A partir das reformas pombalinas, surgiu o interesse de se promover uma delimitação institucional mais precisa entre as colônias portuguesas e espanholas. A intenção de estabelecer, juridicamente, os limites dos domínios territoriais na América do Sul fazem parte do processo de modificação das formas de controle territorial e “constitui uma prova cabal do peso cada vez maior das colônias nas economias ibéricas”. Machado (1989) destaca os aspectos políticos e econômicos como fundamentais para estimular a reforma pombalina, quando “se produziu o primeiro intento de formalizar os limites da atual Amazônia brasileira e do futuro Brasil”.

O Tratado de Madri (1750), único tratado significativo sobre fronteiras entre Portugal e Espanha após anos de obsolescência das delimitações imprecisas de Tordesilhas (1494), foi muito importante na criação de uma nova imagem do território brasileiro após a exploração do interior do continente. Esta imagem veio a ser difundida através de novas cartografias que serviram posteriormente de símbolo para a criação de uma identidade nacional. No intuito de visualizar a delimitação das fronteiras e fazer uma proposta mais eficaz para o tratado, o secretário do estado português, Marco Antônio de Azevedo Coutinho, ordenou a confecção de um mapa que se tornaria um marco para a exploração e a mensuração das fronteiras entre as colônias ibéricas, o famoso “Mapa das Cortes” (Fig. 2)[i].

Figura 2: Mapa das Cortes. Terra Limitanea. Atlas da Fronteira Continental do Brasil, 2002.

Considerando a “ignorância” dos espanhóis frente ao território negociado, esta “carta geral” auxiliou na aceitação dos limites propostos por Portugal, pois permitiria a visualização de “todo o giro dos confins de que tratamos”. Segundo o secretário de estado Tomas da Silva Teles (Cortesão, 1953), ao ver o mapa, o negociador espanhol teria sentido “a grande admiração que experimenta um cego quando vê a luz clara de que se achava privado desde o seu nascimento” (Ferreira, 2007). Esta declaração evidencia uma concepção de exploração e mapeamento ainda muito presente na atualidade, como se estas práticas jogassem uma “luz” objetiva e neutra sobre os espaços previamente opacos e desconhecidos. A terra incógnita teria virado cógnita. As fronteiras de povoamento estariam se transformando em limites internacionais.

Esta visão sobre o Mapa das Cortes e o tratado de Madrid também tende a valorizar explicitamente a atuação dos bandeirantes, que teriam contribuído para estender as fronteiras brasileiras no terreno, possibilitando a argumentação do “uti possidetis”.  Enquanto os exploradores seguiam os passos dos indígenas e ocupavam de forma crescente o interior do território, os diplomatas utilizaram o consagrado direito romano de propriedade para garantir “de jure” o que o Império português já ocupava “de facto” (Machado, 1989). O papel do mapa torna-se assim fundamental, pois é através dele que serão desenhados os novos contornos colônias que futuramente originaram o mapa do Brasil.

Mas é claro que o mapa das Cortes não é simplesmente uma “luz clara” sobre o território. Para além de ser um marco na representação objetiva da América do Sul, o mapa é um documento geopolítico. Construído a partir de uma intencionalidade específica, o mapa apresenta distorções que não se relacionam apenas com lacunas de conhecimento espacial no período de sua produção. Segundo o historiador português Mario Clemente Ferreira (2007), muitos conhecimentos já disponíveis no momento de construção do mapa foram sucumbidos, no intuito de promover um “alargamento intencional dos domínios espanhóis para o ocidente” e uma “minimização da dimensão dos territórios portugueses” (Ferreira, 2007:52). As fontes do mapa são incertas, variadas e seguem sendo debatidas, mas sabe-se que as mesmas foram selecionadas para atender as intencionalidades diplomáticas portuguesas.

Como salientou Cortesão (1953), ao colocar o canal do Rio Grande de São Pedro aproximadamente sobre o meridiano de Belém do Pará, Alexandre Gusmão e os outros atores envolvidos na construção do mapa deslocavam, propositadamente, o sul do Brasil cerca de 3º e 30’ para oriente. Nesse sentido podemos afirmar que a construção do mapa se fez com a “viciação ou a ocultação de conhecimentos já então disponíveis” (Ferreira, 2007), e que através de práticas cartográficas como a distensão da costa nordeste, o desvio para leste do alto Paraguai e o encurtamento do Amazonas, Gusmão conseguiu fazer crer em Madrid que os avanços de Portugal na América do Sul eram menores do que se poderia supor (Cortesão, 1953).

Há certamente um problema na acepção de que o conhecimento dos exploradores e o mapeamento atuam como uma “luz” que ilumina as “sombras que tem escondido terras desconhecidas da vista do homem” (Allen, 1971:42). Para Allen (1971), o conhecimento geográfico não é uma luz branca, e sim “um espectro com lentes pesadas de diferentes tamanhos e valores” (p.42). Ao analisar este espectro é difícil separar o que é “verdadeiramente conhecido do que se pensa ser conhecido” e com isso o pressuposto da absoluta descoberta do mundo seria inteiramente superficial e falacioso. Assim como nas primeiras expedições geográficas, nossas imagens pré-concebidas sobre o espaço seguem moldando a nossa experiência e as geografias imaginativas permanecem representando certas áreas como “remotas” e “longínquas”.

Segundo Hiatt (2008), a expressão terra incógnita é hoje uma poderosa metáfora, pois mesmo na era do abrangente “Google Earth”, ela segue sendo aplicada para se discutir a relação entre imaginação e espaços “desconhecidos” por grupos específicos. Como afirmou Wright (1947:72), “se hoje não há terra incógnita em sentido absoluto, tampouco há alguma terra absolutamente cógnita”, pois seguimos nos relacionando com o espaço a partir de representações e modelos socialmente produzidos e compartilhados.

Como terras incógnitas literais, as fronteiras sul-americanas passaram séculos sem serem devidamente exploradas e representadas pelos cartógrafos europeus. Como terras incógnitas metafóricas, essas regiões seguem sendo recorrentemente qualificadas através da imaginação e da narrativa compartilhada nos centros metropolitanos. Mesmo no século XXI a idéia de “espaço vazio a ser ocupado” ainda povoa o imaginário sobre as fronteiras dos centros de poder Sul-Americanos e novos “monstros” mitológicos são representados nestes espaços, como traficantes, invasores, contrabandistas e contraventores.

Neste sentido, a fronteira segue sendo um “anti-mundo” e seria um grande equívoco comparar os mapas aqui apresentados a partir do pressuposto simplista de uma transição do desconhecido para o conhecido, do incógnito para o cógnito. Se admitimos que a imaginação é um elemento fundamental na nossa relação com o espaço, compreende-se que as fronteiras ainda podem ser entendidas como espaços “não descobertos” e metaforicamente incógnitos.

Considerando a visão metropolitana e litorânea de muitos brasileiros, a Terra Brasilis segue sendo Terra Incógnita, um espaço relativamente vazio e não civilizado, dependente de políticas públicas formuladas a partir do seu exterior. A persistência desta visão em pleno século XXI, talvez seja um dos grandes desafios para o reconhecimento de dinâmicas próprias e trocas autônomas existentes nos espaços fronteiriços, frequentemente imaginados como áreas a serem ocupadas, protegidas e colonizadas a partir dos centros metropolitanos. Para rasgar essas fronteiras e valorizar pontos de vistas que partam do continente para o litoral, talvez os mapas criados por artistas sejam muito mais eficientes do que os compassos e coordenadas das expedições de delimitação territorial que varreram o país após o século XVIII. Como afirma o poeta colombiano Luis Felipe Noé: “Em nossa América o descobrimento ainda não se sucedeu e a conquista ainda não terminou” (Parra et alli, 2000).

 

***
André Reyes Novaes trabalha no Departamento de Geografia Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e é doutor em geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. O autor esteve como pesquisador visitante em Universidades inglesas como a Royal Holloway University of London e a University of Nottingham e atualmente é professor colaborador no programa de Pós-Graduação em Geografia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Seus interesses de pesquisa articulam temas como geopolítica, imagem, ensino e cartografia.
 Todos os direitos reservados.
***

 

Referencias

 

ALLEN. J. L. (1971): Lands of Myth, Wathers of Worder: The Place of Imagination in The History of Geographical Exploration. In: LOWENTHAL, D. e BOWDEN, M. (eds): Geographies of the Mind: Essays in Historical Geosophy. New York and Oxford. Oxford University Press.

CORTESÃO, J. (1953): Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores – Instituto Rio Branco, parte IV, tomo I, doc. LXXVIII.

FERREIRA, M. C. (2007): O Mapa das Cortes e o Tratado de Madrid. A Cartografia a serviço da

diplomacia. VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 23, nº 37: p.51-69, Jan/Jun.

HIATT, A. (2008): Terra Incognita. Mapping the Antipodes before 1600. London: British Library.

MACHADO, L. O. (1989): Mitos y realidades de la Amazonia Brasileña en el contexto geopolítico internacional, 1540 – 1912 Doutorado em Geografia. Universidad de Barcelona, U.B. Espanha.
JACOB, C. (2006): The sovereign map: theoretical approaches in cartography throughout  history.

Chicago and London: University of Chicago Press.

SAFIER, N. (2009): The Confines of the Colony: Boundaries, Ethnographic Landscapes, and Imperial Cartography in Iberoamerica, In: AKERMAN, J. R. The Imperial Map. Cartpgraphy and the Mastery of Empire. Chicago and London. University of Chicago Press.

PARRA, A. L. et alli (eds) (2000). Proyecto Mapa. Bogotá and Caracas: Arte Dos Grafico and Quinta

Papeles.

SOARES, T. (1973): História da Formação das Fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro editora. Biblioteca do

Exército.

WRIGHT, J. K. (1947): “Terrae Incognitae: The Place of Imagination in Geography”. Annals of the

Association of American Geographers 37: 1-15.