01 | Dossiê

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Tempo Eterno Passageiro

 

para Bebel viajante no tempo

e para Beth, sempre

 

 

Tempo? Como escrever agora se o ontem e o amanhã têm rumo certo a um ponto fixo presente? Como estancar a hora, se o tempo sangrado ontem e o sagrado amanhã espremem-se agora na ausência do momento inexistente? Como falar do tempo depois de Elliot? Como não falar do tempo, que consente a palavra, ordena mundos e concebe sonhos, riscando com luzes & fatos, abandonando-nos aqui, onde não já se encontra.

Como falar do tempo depois de Elliot? Como não falar do tempo, se carne, água vidro corte, movimento imóvel, pincel vida. Como falar do tempo, sílaba que não se pronuncia, distâncias no emaranhado de impossíveis infinitos, onde me calo aflito e aflito fico.

Grito, grito com a última voz do que se perde em pleno voo, grito com a molécula que resta com o órgão em festa e com a música desordenada. O que me consome, o tempo uma cidade aberta que me abraça e perdoa por eu não saber a chave dos seus dourados cadeados, por não trazer comigo o único segredo que sabia, o vão da porta uma palavra fria, o tempo, uma cilada?

 

O agora, esse tempo inexistente, é quando o tempo se inicia, quando ele se estabelece, imediato em dois sentidos opostos: inventa passado e futuro como possibilidades. Coisa indivisível, nasce pronto sem infância ou arrependimentos, contém no nada que lhe forma sempre uma saudade e um desejo. É uma peça que se nos permite pensar, por completo, o tempo.

Com este conceito de agora olharemos os mundos e os descreveremos com nossas teorias.

O tempo: sua intuição, feita de agoras que não se dividem, pois feitos de saudades e desejos, torna-se humano, como humano torna-se toda coisa por nós compreendida. O tempo, que dele nada sabemos, é sempre por nós compreendido – disso já sabia Santo Agostinho quando disse que todos sabiam o que é o tempo enquanto sobre ele não se perguntavam.

Ora, ora, ora, só se pode falar mesmo do que não se compreende e sobre o que se compreende nada se fala – toda palavra é uma pergunta e todo silêncio responde. Perguntas e respostas são feitas de palavras e silêncios. Toda palavra pronunciada é uma pergunta sobre a morte, início de tudo. Talvez seja isso a que se referia Wittgenstein no seu último aforismo. A compreensão leva ao silêncio, um silêncio imóvel, abandonado e cósmico.

 
Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo…
Tenho dó delas.
 
Não haverá um cansaço
Das coisas,
De todas as coisas
Como das pernas ou de um braço?
 
Um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir…
 
Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não morte, mas sim
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão –
Qualquer coisa assim
Como um perdão?

Fernando Pessoa


Os Paradoxos de Zenão: O Tempo eterno e a negação do movimento.

Se olharmos da janela de um avião bem distante da terra, a cidade abaixo é imóvel, parece imóvel, melhor dizendo, como se ao olharmos uma laranja não percebemos sua atividade superficial… Os movimentos parecem em ambos os casos que se apequenam ao ponto de desaparecerem completamente de nossa percepção. Claro que, ao usarmos uma boa lupa ou ao baixarmos a altitude da aeronave, os movimentos reaparecem, e se aumentamos a magnitude de nossa ótica, nos aproximamos e, enfim, vivemos o fervor dos acontecimentos. Se de longe o mundo se torna estático e de perto eterno fluxo, a “disputa” Heráclito X Parmênides pode ser vista como duas possibilidades verdadeiras que se separam por uma questão de escala, não precisando ser necessariamente incompatíveis. Na visão parmenidiana, o movimento é uma ilusão essencialmente humana, semelhante à ilusão cinematográfica que produz movimento onde só existe sequenciamento de objetos estáticos. Por outro lado, dentro dos acontecimentos o imóvel é a morte e suas representações e, portanto, inatingível pela prática e apenas teorizável. Para Heráclito, ou o que se pensa ser as ideias dele, a morte torna-se o imóvel ponto de fuga apenas imaginável ou, se preferirmos, o imóvel é um ponto na morte em fuga apenas imaginável, o que não é o mesmo, mas é igual. Dois mundos iguais e diferentes que supomos em contradição para possibilitar o diálogo das teorias, as gregas teorias que quase tudo nos ensinaram.

A Eternidade torna-se um tempo que se mira em um espelho infinitamente distante. Imóvel e equidistante de todo e qualquer acontecimento, de todo e qualquer saber, ela se dá fora de si. Isso, saber e perceber essas propriedades do que se diz eterno, nos ensina as artes reflexivas do desapego; é quando estamos e somos fora de nós que alcançamos o eterno. Por quanto tempo? Estar, por minutos que sejam, eternizados não será viver o eterno, em todos os sentidos?

De quantos tempos falamos ao falar do tempo? Como entendê-los sem desmembrá-los pelos tique-taques das teorias? Qual tempo é filho das repetições e dos relógios e qual existe na eternidade das pré-coisas?

 

digressão 01

Em carta o tempo tem outras dimensões; no amanhã, o agora que te escrevo. O tempo existe em uma geometria diferente da que usualmente dominamos nos nossos afazeres intelectuais. Impermanente ao deslizar-se no mundo, ganha ou perde importância ao se deslocar nas palavras e nos gestos.

Às portas do cinema Miramar, vivi cada detalhe alongado pelas baforadas inesquecíveis do Colúmbia, sem filtro ou delicadeza, longe da saúde tragada por sua caravela vermelha, seus cabelos compridos, que não se sabiam, me aprisionaram no encontro que não se deu. Hoje 1.513.728.000 (um bilhão quinhentos e treze milhões setecentos e vinte e oito mil) segundos depois esse agora esquecido ainda se alonga dentro e fora do tempo e flerta com a eternidade sem que eu me lembre dos nomes e dos amores, dentro e fora do cinema. Viver, talvez seja mesmo ser em um eterno gor, entre dois as o da saudade que molda nossa história passada e o do desejo a inventar futuros. Somos um grito, um gor e assim, existiremos?

 

A flecha que nunca atinge seu alvo. A Cena. Suas questões e refutações matemáticas. Suas possibilidades num multiverso cinematográfico.

A cena é simples, acredito que podemos pensar o arqueiro, sem o qual a flecha inexiste para os dons da viagem, um arqueiro forte transmitindo potência em movimento. Um índio, um pajé marinheiro enlouquecido de amor, pés velocíssimos rasgando a terra, sempre imóvel, de onde brota. Arco tenso, gozo, flecha em movimento. Será? O que não se podia esperar é que da simplicidade das lógicas mais cristalinas surgisse a contradição. Gödel, 2000 e tantos anos antes de Gödel, já se preparava para a fotografia. Seu famoso teorema já estava pronto, na impossibilidade do que era certo e verdadeiro, esperando, pacientemente, a hora de sua invenção e consequências. A flecha no seu destino alvo teria, inexoravelmente, de cumprir metade do seu destino verdadeiro e chegar à metade do caminho. A geometria é simples: não se pode ir de um ponto a outro sem passar pela metade do caminho. O espaço que separa origem e destino é, infinitamente, divisível. Todo segmento se deixa partir ao meio, essa é a intuição do espaço.

 

digressão 02

Não há razões para pensar um espaço descontínuo, mesmo que a evidência da matéria atomizada assim o sugira. Vivemos e construímos nossas intuições em um mundo essencialmente contínuo, onde o espaço é, sim, localizável por pontos espaciais e suas coordenadas. Nosso espaço, diferentemente de nosso tempo, é contínuo e se deixa desvendar por números reais, suas coordenadas, independente de suas dimensões. Sempre haverá uma reta passando por dois pontos e um segmento infinitamente divisível entre eles, continuamente ligando seus extremos. É da intuição de espaços contínuos e infinitamente divisíveis que surge o primeiro postulado de Euclides que possibilita a geometrização do mundo, os modelos físicos sobre o mundo.

A cena se encerra, mas seus desdobramentos se infinitizam. Se a flecha necessita atingir a metade do caminho entre o arco que se distende e o alvo a que se destina, desse ponto médio ao alvo, uma nova cena se estabelece idêntica a original: do meio do caminho ao alvo, uma nova metade terá de ser vencida, a flecha novamente atingirá, se seu destino é chegar ao alvo, uma nova metade, a metade da metade do caminho. E sempre, indo de metades em metades, infinitos percursos se estabelecerão entre o arco e o alvo, todos feitos de metades que precisarão ser cumpridas. São infinitas tarefas, que não podem ser feitas por menos e cada uma delas gastará um certo tempo, finito, tempo necessário a cada tarefa, tempo medido pela conclusão das tarefas, das infinitas tarefas que, por serem tantas, necessitarão de um tempo infinito para serem todas realizadas. Por menor que seja a distância da metade conquistada, ela necessitará de um tempo, feito de agoras que se sucedem, pequeno, é verdade, a medida que as metades diminuem de tamanho, mas sempre finito, maior que zero, pois ao tempo, diferentemente do espaço, não é possível existir em pontos, pontos de tempo, mas sim nos agoras que guardam saudade e desejo. Se o tempo necessário para ir-se do arco ao alvo, de um ponto a outro é sempre infinito, todo movimento é impossível. Não existe movimento. Vivemos na estática do nada. O mundo não passa da ilusão do mundo.

Ora, mas a flecha de fato atinge o seu destino. Eu vejo, eu sei, eu sinto. O mundo não pode ser menos que suas teorias e seus modelos. Como resolver essa contradição, posta pelos paradoxos de Zenão e exemplificada por essa viagem impossível?

São mais de 2000 anos de ciência em cruzada contra as contradições. As primeiras refutações surgem na época da própria formulação zenoniana e, depois, Aristóteles se dedica a mostrar que alguma falha existia na construção lógica de Zenão, contra o movimento. A questão se arrasta até os dias de hoje. Se fizermos uma pesquisa rápida por nossos poderosos meios digitais, veremos que ainda são escritos centenas de trabalhos científicos por ano discutindo os paradoxos do movimento, sempre com a intenção de refutá-los. No século XVIII com a invenção, por Newton e Leibnitz, independentemente – até certo ponto – do que hoje chamamos de Cálculo diferencial o problema da refutação dos paradoxos de Zenão foi dado como resolvido. Com a noção de limite, inerente às formulações da diferenciabilidade, ficou acertado que o tempo gasto para a realização de cada tarefa diminuiria proporcionalmente ao tamanho da tarefa e que a soma da série de tempos poderia ser finita, mesmo com um número infinito de parcelas. Assim, o percurso da flecha seria percorrido por uma soma infinita de metades espaciais a qual corresponderia uma soma, análoga, de soma de tempos cada um a metade do seu antecessor. Esse procedimento resolve o problema do paradoxo, mas implica em termos para o tempo a mesma modelagem espacial com intervalos de tempo sempre eternamente divisíveis. Isso também implica em termos, no limite, um intervalo de tempo de tamanho zero. Um tempo sem memória, um tempo transformado em coordenada puramente numérica e anti-intuitivo. Um tempo transfigurado.

 

digressão 03

Matematicamente o tempo não existe, é geometria, ou melhor, um eixo feito de números, é álgebra e des-existe de ser tempo de humanidades para ser feito de instantes nulos, de nadas de tempo, de pontos delirantemente matemáticos que, deveras, nada significam.  Estranhamente a física dos mundos se apega a esse tempo-não e com ele cria escalas e mede vidas e civilizações, não se dando conta que uma vida de homens, ideias ou cidades não se pode medir em anos, minutos ou segundos, e que as lendas que os formam não se transformam em números mas em história.

Mesmo contrariando a intuição que temos do tempo, essa solução é adotada pelas ciências físicas sem constrangimento. É esse tempo algebrizado que serve de modelo para todas as análises físicas.

O quanto perdemos de entendimento do mundo com essa afirmação contra-intuitiva, não sabemos dimensionar. Se nossas modelagens físicas do mundo serão capazes, estranhamente, de descrever inexistências, não sabemos. O que sabemos é que esse tempo puramente matemático, produz, nas equações modeladoras, muitas singularidades, que não apareceriam se tomássemos um tempo feito de agoras e que essas singularidades são interpretadas por suposições de objetos cósmicos cuja existências são, ou podem ser, bastante questionáveis.  As singularidades são objetos puramente matemáticos que não se refletem em objetos do mundo, mas como são adotadas pela ciência oficial, impõem, numa relação onde a pressão política exerce força maior do que evidências, novas configurações galácticas e um entrelaçamento entre fantasia e realidade que dificilmente é admitido pelos cientistas.

A ideia de Bergson de que eventos/acontecimentos no mundo não podem ser partidos ao meio cria uma nova discussão questionando o uso abusivo de um tempo algebrizado pelas ciências.

Por outro lado, a afirmação de um tempo com intervalos mínimos indivisíveis, dá, a princípio, razão à construção lógica dos paradoxos de Zenão e reacendem a contradição entre o sensível e o teórico. Difícil convencer a quem quer que seja da não-existência de um movimento que é por nós experimentado. Uma solução que permite conciliar o sensível com as experiências zenonianas passa por uma visão cinematográfica das coisas, de todas as coisas. Como em um filme em que o movimento percebido é aparente (já que o que temos no filme que roda é uma sequência de imagens estáticas que se sucedem à mais de 24 quadros por segundo) e produzido dentro dos nossos cérebros por  uma espécie de  defeito cognitivo, que  embaralhando  as figuras dos fotogramas das películas, ao tentar ao mesmo tempo apagar uma imagem e olhar a próxima, cria entre elas uma interpolação geométrica suave que se nos dá a ilusão do movimento. Dessa maneira, poderíamos entender o universo como múltiplo e co-existente. Um multiverso que se sucede incessante, no qual, o que chamamos movimento no mundo seria apenas uma interpolação cinematográfica dessa sucessão incessante dos universos que, em analogia com os fotogramas, seriam todos estáticos. O movimento estaria de volta a um estado ilusório. A flecha pode sim, atingir o seu alvo, mas a viagem seria feita por um número enorme de flechas, cada uma em seu universo particular e todas elas estáticas. Cada universo estático, apareceria na história de todas as coisas apenas uma vez, dando sempre lugar a outros o que provocaria em nós, mais uma vez , por causa de uma certa impossibilidade cognitiva, coletiva, a ilusão do movimento. As verdades mais uma vez aparecem partidas ao meio, equidistantes do mundo e igualmente possíveis. Cabe, em fim, à nossa rede de crenças determinar o que é o mundo e como ele se comporta.

 

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

Carlos Drummond de Andrade

 

A corrida de Aquiles com a tartaruga – uma conversa godeliana: o que precisa ser ultrapassado é que o mais rápido e ordeiro sempre ultrapasse o mais reflexivo e disperso.

Entre as surpresas do tempo, há o surgimento de inesperados, que modificam as velocidades de percepção de mudanças. É quando a percepção se dá ampliada e distanciada concomitantemente, como se por uma câmera fotográfica, registradora de acontecimentos, aplicássemos zoom e grande angular na mesma foto. Detalha-se sem perder a amplidão. Excelências que as tecnologias buscam, mas, aprisionadas por um tempo algebrizado, se distanciam do objetivo a medida que dele se aproximam. Esse efeito, que podemos chamar de moozoom, acontece quando diferentes velocidades temporais coexistem. Não é um efeito óptico, mas filosófico, e para imitá-lo artificialmente precisaremos aprimorar as tecnologias filosóficas disponíveis em nossos arsenais de artificialidades.

Na corrida entre a tartaruga e Aquiles, paradoxo logicamente equivalente ao da flecha que não atinge qualquer alvo, o inesperado grita mais alto. Parece-nos mais inesperado não ultrapassarmos, Aquiles que somos, uma tartaruga, do que uma hipotética flecha, disparada por um índio destecnologizado, não atingir seu alvo. Que alvo? Os preconceitos de uma época-história não se desgrudam dos pensamentos que desenvolvemos/criamos. Inesperar-se é sempre pessoal e não se dá teoricamente. Podemos sim classificá-los, os inesperados, como a um conhecimento estabelecido, mas seu surgimento é determinado na mesma rede de crenças onde estabelecemos as primeiras condições de possibilidades para todas as existências, lugar também dos preconceitos e certezas. O inesperado é afeito logicamente à estrutura paradoxal e psicologicamente à consciência da morte – quando não ultrapasso tartarugas, é a morte e só a morte que me impossibilita. A vitória certa de Aquiles se desfaz. Guerreiro de tradição grega, estará mais morto derrotado do que morto propriamente dito. O inesperado sendo composto de tempo e filosofia, aparece inesperadamente na prova de Gödel ao seu mui famoso teorema de 1931.

Se pensarmos a demonstração como uma ultrapassagem da incerteza, da indecisão, da dúvida que as verdades encerram, provar um teorema é ultrapassar a incerteza da conjectura que o propõe.

Vivendo as vésperas de paraísos prometidos pelos progressos em todos os campos do saber humano, o final do século XIX vive nas matemáticas, o sonho de serem completas e consistentes, capazes de ultrapassar todas as suas tartarugas feitas de incertezas e sempre livre de qualquer contradição. Esse era o desejo e a certeza da matemática: provar consistentemente todas as verdades por si propostas, ultrapassando sempre e velozmente com seus teoremas certeiros todas as tartarugas que se lhe atravessassem o caminho do paraíso.

O que Gödel mostra é que seguindo as lógicas e dentro das condições estabelecidas para as matemáticas operacionais sempre existirão questões, proposições indecidíveis, que não podem ser demonstradas, tartarugas insuperáveis pela potência matemática. A conquista  da consistência é que barra a certeza da consistência. O inesperado inesperado se dá quando, em sua estratégia de ultrapassagem, percebe que o que não pode ser demonstrado é que existe uma proposição que não pode ser demonstrada.

As tartarugas imbatíveis surgem sempre pelo acréscimo de complexidade da estrutura em pauta. É essa grande complexidade que produz as várias velocidades dos tempos que acompanham os inesperados.

digressão 04

Há uma crise nas ciências e suas disciplinas. Passar de um tempo linear para um complexo de tempos embaralhados, passar da disciplina para a desdisciplina, passar ao plural é abrir espaço para entender complexidades: as geometrias não euclidianas e seus avatares nas gravuras de Escher. O Real e o confuso humano. Os princípios das lógicas extraídos do corpo, esse bailarino de infinitos, esse dentro e fora sempre agora, essa topologia de surpresas que o corpo ensina e as matemáticas comungam e confirmam. Um corpo feito de versos existe na biologia dos algoritmos. Há que recitá-lo para compreender o mundo.

 

            O Passado: tempo atravessante que insistentemente nos pergunta: como diferenciar o passado do futuro sem um agora com saudades e desejos?  Por que nos lembramos no sentido correto dos acontecimentos e não no (mais plausível logicamente) reverso no tempo? Por que o tempo se apressa quanto mais velhos ficamos? As perguntas se sucedem e as respostas, todas de um presente elástico e cada vez mais eternizado, seguem alguma lógica e afirmam que o passado deixa rastros de sua impossibilidade e que seus inesperados são sempre esperados. É o lugar da morte que, reversa no tempo, pari pensamentos de suas fontes invisíveis. E afirmam que o sentido da compreensão se impõe ao das lembranças empilhadas e que quando revendo os marcos da memória encontramos primeiro o final de um acontecimento, pois esse final foi produzido em um tempo mais perto do hoje em que nos lembramos, retardamos a lembrança até que ela faça sentido histórico, ou seja, até que ela se oriente em uma cronologia crescente e normalizadora. E afirmam que a velocidade do tempo apressa-se com o passar dos anos porque o valor relativo da unidade se apequena frente ao acúmulo de anos crescentes do passado. Por já não vivermos novidades, que se rareiam com o passar do tempo, tornando-se esparsas. O tempo parece inexistir entre as vivências de novidades. São as novidades, os inesperados em suas distintas versões que marcam o tempo. Intervalos sem novidades tendem a ser normatizados em um intervalo padrão. Um ano, ou mais, sem novidades, comum aos velhos, é como um simples segundo quando sucessões de novidades acontecem e vivemos, jovens que somos ou fomos, cada acontecimento como se fosse a primeira vez, e era.

O que o passado provoca no presente? Seus atravessamentos…

 

            O Futuro: tempo paralisado.

 

Uma  Nota
Recebo a notícia de minha morte
Já não há nada a fazer.
Alguns segundos atrás sim.
Quando escrevi o ‘R’ do nome recebo
Não havia o fato que a notícia ora transporta
A morte então anunciada ainda era vida
Agora não, já não há nada a fazer além
Da breve nota fúnebre que aqui despacho.
Acabo de receber a notícia de minha morte
Eu mesmo vi, presenciei o último instante
Auscultei a sopro derradeiro
Expirei como sonhos de um voar tão curto
Como a interrupção da luz que o vento apaga
Constatei o pulso, nada. O corpo relutante
A alma voa, a carne já não faz sentido, a mente à-toa e a ideia
Cumpre seu desígnio.  Eterniza.
Eu sou o osso que então me carregava e o osso
A ideia simples que a carne a mente a alma em vão buscavam.

 

Como ser em movimento se todo passo é um passo em falso? Se pensarmos o futuro como o lugar dos desconhecidos e portanto do projeto de morte – inexistente – que temos em nós, andar é andar sem se saber, é andar em falso e na surpresa dos inesperados.

Futuro, o que não pode ser dito…

 

           O Inesperado Inesperado. Há muitos anos atrás, meus filhos ainda crianças me prepararam para uma festa, aniversário ou natal, não me recordo, um poema que leram em uníssono: A Morte[1]  de Vinícius de Moraes, que conheceram no colégio e, talvez porque eu sempre falava da morte como um motor para a vida e para os vivos, me presentearam com ela. Como o amor e a primavera, vivemos a espera dos inesperados. Vinícius nos ensina que A Morte é o esperado inesperado. Esta coisa que não faz sentido e que messianicamente nos abarca corpo e pensamento.

 

A Morte
 
A morte vem de longe
Do fundo dos céus
Vem para os meus olhos
Virá para os teus
Desce das estrelas
Das brancas estrelas
As loucas estrelas
Trânsfugas de Deus
Chega impressentida
Nunca inesperada
Ela que é na vida
A grande esperada!
A desesperada
Do amor fratricida
Dos homens, ai!  dos homens
Que matam a morte
Por medo da vida

Vinícius de Mores

 

O duplo inesperado, emaranhado por um duplo fio de desesperança, como uma vida desesperançada, possível apenas nas literaturas, só pode ser percebido a posteriori, quando colapsado em tempo passado se nos permite olhá-lo com espanto e curiosidade. Talvez as primeiras embarcações europeias surgidas nas praias de um Brasil ainda sem nome e sem tempo, confundidas com ilhas e sacralizadas como inesperado inesperado.

Os famosos teoremas de Gödel soam nas lógicas matemáticas desta mesma maneira: inesperada inesperada. Seus desdobramentos filosóficos, embora nos espantem, formam inesperados esperados, posto que sempre se espera e se esperou dos pensamentos maior liberdade do que a das fórmulas. As questões levantadas sobre as possibilidades de inteligências artificiais usando argumentos derivados destes teoremas se originam dessa expectativa: somos mais livres do que nossas fórmulas matemáticas. Hoje, nada se pode afirmar, ou melhor; tudo se pode afirmar sobre essas questões que ainda por muito tempo habitarão nossas reuniões lógico-filosóficas. É do ponto de vista da própria matemática que o inesperado inesperado se apresenta. É Hilbert em nosso nome, vendo seus sonhos formalistas desabarem, quem se assusta inexoravelmente. É, talvez paradoxalmente, talvez não, a matemática que produz, dentro de si, o exemplo mais emblemático de inesperado inesperado.

 

Do inesperado inesperado ao inesperado esperado há um caminho a se seguir.

Podemos observar, na história do Teorema de Gödel um movimento. Dentro da matemática, ele se dá como um inesperado inesperado, como uma traição ao rigor lógico, mas em sua volta pela filosofia ele apenas comprova, inesperadamente o esperado resultado de que algo escapa aos sistemas que almejam açambarcar todas as coisas.

Inesperados esperados acontecem como destino, comprovando uma certeza de que tinham de acontecer. O que é de fato inesperado, é quando…  Tratam-se sempre de surpresas temporais. Inesperados inesperados, sempre traem um sistema consagrado, quebram certezas e sempre erguem dos escombros novas possibilidades. São vários tempos em diferentes velocidades que se misturam e se entrelaçam.

 

sobre o tempo
sua lentidão na espera
e
fluidez confusa no amor
nada
nada mesmo
se pode
escrever
dele
do seu sorriso passageiro
nada
nada mesmo
se pode
esperar
as horas
são caminhos impossíveis de alcançá-lo
minutos
segundos
movimentos
sempre vivos apenas nas suas próprias ilusões
e os relógios
esperança de quem
como eu
entre sorrisos
aflito
contempla atônito
o que as distâncias guardam
as horas e os relógios
não tem mesmo nada a ver com isso.

 

           Desconcluindo. Evitar inesperados é como evitar paradoxos nos sistemas logico-matemáticos, perde-se complexidade. Passamos do infinito ao finito, do vivo ao número, da dança ao ponto e seus rastros que marcam trajetórias sem histórias, passamos da poesia aos sólidos regulares que se encaixam telescopicamente sem nos revelar estrelas.

Imóvel e sem ilusões, a salvo dos acontecimentos, não avançamos pra o futuro. O inesperado desiste, mas o futuro, se ele existe em nós e fora de nós, é porque ele se nos atravessa. Vem como onda e se transforma ao contato com o corpo em repouso-tensão, em passado, cujos relatos nada revelarão do passado futuro que ora foram.

Um olho parado no ar descansa o mundo e o mundo rodando, rodando, ainda assim, acontece. É o tempo.

 

***

 

Ricardo Kubrusly é matemático, poeta, professor, pesquisador do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia – HCTE – UFRJ. 

 

 Todos os direitos reservados.

 

[1]Poemas Sonetos e Baladas São Paulo: Gaveta 1946. A Morte é o segundo soneto do livro. O primeiro é o famoso Soneto da Felicidade.