02 | Lupa

A+ A-

Carbono entrevista Ricardo Basbaum

Clique para ver a imagem maior

 

Figura 5 – Ricardo Basbaum. Livro G. x eu off-set, 1998.

Pensar a rede através da rede
Em uma conversa via Skype [software de comunicação à distância que realiza chamadas através da internet], a Carbono #02 entrevistou Ricardo Basbaum, artista brasileiro cuja prática se desenvolve principalmente na interação com um público-participante-colaborador. Ricardo Basbaum organiza oficinas, encontros, momentos de presença mobilizadora que potencializam, transformam e são incorporados no seu trabalho. Algumas obras se constroem em rede, desdobrando relações à distância, mas também são cruciais os processos fundados na interação presencial entre o artista e grupos de participantes.

Nossa conversa foi diversas vezes interrompida por ruídos e falhas na conexão – o que nos provoca a pensar como se dá essa comunicação mediada por uma rede intermitente, frágil, capaz de gerar curto-circuitos no pensamento. Entre chiados e repetições, a vontade de diálogo é grande e as idéias são persistentes; sua viagem por caminhos invisíveis não termina por aqui.

 

Carbono: O que é o NBP? De onde ele surge e como esta ideia se desenvolveu no seu trabalho?

Ricardo Basbaum: NBP é uma sigla para a expressão “Novas Bases para a Personalidade” e isso apareceu em meu trabalho em torno do final dos anos 80 e início dos anos 90. Digo que esse início – para o projeto começar – demorou uns três anos, 89, 90, 91…; a partir de 1991 a coisa começa mesmo. E, em torno disso, foi se desenrolando a história desta expressão NBP, que é também uma sigla e que é também um projeto de trabalho. Então, o que se chama NBP surge numa confluência de três situações: primeiro, a vontade de trabalhar com um projeto, com a ideia de projeto, para que eu pudesse ter um núcleo a partir do qual fosse desdobrando, agregando coisas, que fosse amplo o suficiente para trabalhar com qualquer modalidade de linguagem, e que tivesse questões conceituais que eu pudesse revirar e redobrar. Porque, para mim, o tema desse momento era exatamente como juntar a questão do trabalho plástico com o interesse na construção de um sistema conceitual, vamos dizer assim, ou da possibilidade de trabalhar com o discurso e a derivação desse discurso.

NBP é, para mim, também o momento em que consegui juntar essas duas coisas, é uma tentativa de juntar, agregar. Porque o desenho do NBP, aquela marca, eu considero que seja verbal e visual ao mesmo tempo. É um signo, não é? Então, tem essa vontade de trabalhar com um projeto, ou seja, de ter uma perspectiva de longo prazo. E, de certo modo, também continuar nesse lugar que eu já tinha começado a ocupar com o projeto do Olho e, de certa maneira, com o trabalho da Dupla Especializada, que é um lugar entre arte contemporânea e comunicação, vamos dizer assim. É a continuação da construção de uma proximidade com as ferramentas da comunicação e com as questões da arte contemporânea.

E eu indicaria ainda uma terceira situação que faz o NBP acontecer, no sentido de que também foi uma maneira de reagir a uma série de experiências dos anos 80 – que foram super intensos para mim. É quando eu começo a trabalhar; e tem o trabalho da Dupla Especializada com o Alexandre Dacosta, o grupo Seis Mãos, que é com o Alexandre Dacosta e o Barrão. E também A Moreninha, a exposição Como vai você Geração 80?, uma série de coisas ali, muita coisa mesmo. E, de certa maneira, com o projeto NBP eu tento reagir a tantas situações que foram enfrentadas nesse momento inicial do trabalho.

Dupla Especializada; Hino o Dia Nacional do Artista Plástico, 1989, Cinelândia, Rio de Janeiro. Fotografia: Márcio R.M.

 

Seis Mãos – Improviso para pintura e música, 1983, Ipanema, Rio de Janeiro. Fotografia: Barrão.

Carbono: “Novas Bases para Personalidade”: o que isso quer dizer?

Ricardo Basbaum: Essa expressão, essa frase, é também algo que me permitia trabalhar com a sigla, não é? Porque eu achava que se utilizasse essa marca, o desenho que chamei de forma específica NBP, também teria que ter um nome para isso que fosse de fácil memorização. O desenho foi pensado como uma coisa que você memorizasse facilmente, que você olhasse e já saísse com aquilo em sua memória – pensando na ideia de memória implantada, memória artificial. E a sigla NBP teria que acompanhar isso, quer dizer, essa frase Novas Bases para Personalidade deveria ser tornada compacta, e portanto seria mais fácil de distribuí-la e também memorizá-la se fosse reduzida a três letras. É mais fácil falar “NBP” – que tem até uma musicalidade, uma sonoridade – do que a expressão “Novas Bases para a Personalidade”. Essa expressão e a sigla surgem juntas, elas tinham que ser reversíveis uma na outra.

E também essas três letras organizam três núcleos, que se dão, primeiro, em torno da ideia de transformação. Sob o impacto do trabalho do Hélio Oiticica e da Lygia Clark, nos anos 80, pensava que era importante considerar que a relação com o trabalho de arte levaria a uma transformação. Que transformação seria essa? Naquele momento, achei que a transformação seria indicada por “Novas Bases para Personalidade”. Esta sigla envolve a ideia de transformação no contato com o trabalho. Mas a sigla deveria também ter a ideia do “novo”, teria que pensar como isso aconteceria em um trabalho contemporâneo, pois não se tratava mais de arte moderna, é claro. É uma pergunta que de alguma maneira abordo no primeiro texto do projeto NBP, que li em público em 1990, no CEP 20.000. Então a sigla trazia a ideia do novo.

A “base” aparece como uma ideia de estrutura, que acho que tem a ver com a situação de projeto, de derivar um projeto, de ter um núcleo a partir do qual posso derivar. Quanto ao P de “personalidade”, ainda que personalidade seja, por um lado, um conceito aparentemente um pouco arcaico para a psicologia, por outro lado falava da expressão em público, de estar em público – de algo que é visto pelo outro – mas que não se refira à auto-expressão. Não é tanto o que se pode querer em termos de expressão pessoal, íntima, de um interior que vai ser revelado, mas, ao contrário, muito mais em direção àquilo que se dá em público, que pode ser capturado em um display público. Essa “personalidade”, na verdade, fala do sujeito em público, de situações em público, para o outro. E isso estava muito ligado ao trabalho da Dupla Especializada e do Seis Mãos. Essa sensação e essa ambiência, próprias da época, marcaram muito os anos 80. Parecia que se era arrancado para a esfera pública, que estava em transformação, em meio a um certo turbilhão em que o Brasil foi lançado naquele momento – e eu, de certa maneira, estava me iniciando nesse lugar. Era uma vontade de atuar aí e me perceber sendo requisitado, sendo sugado por este lugar. Esse P da “Personalidade” fala disso.

Figura 1 – Ricardo Basbaum, 1998. Livro G. x eu, off-set, tiragem 500.

Carbono: A forma do NBP se aproxima de representações químicas de moléculas e átomos. Vírus, contágio e contaminação são algumas palavras que se relacionam com sua prática. Existe algum interesse especial pela ciência em seu processo criativo?

Ricardo Basbaum: Bom, interesse pela ciência, de modo amplo, claro que tenho, tanto que fiz faculdade de biologia, apesar de não ter seguido essa carreira. Sempre tive interesse como um ‘assunto’, uma parte das questões do mundo. Mas, ao mesmo tempo, reconheço especificidades imensas no campo da arte – que é diferente do campo da ciência. O meu interesse pelo campo da ciência é enquanto uma área do mundo, que ajuda a perceber o mundo, mas não tanto por suas metodologias – são as metodologias que fazem esse campo ser diferente do campo da arte. Porque o problema dessas relações é que o campo da ciência é muito mais poderoso, em todos os sentidos – muito mais sólido economicamente, socialmente – e acaba por devorar o campo da arte. Em geral quando vemos essas relações acontecendo, vemos claramente que o campo da arte é colocado como menos decisivo, metodologicamente, socialmente, que o da ciência – a ciência é dominante.

Isso sempre foi claro para mim: as metodologias que me interessam são aquelas da arte. Mas sempre houve, claro, um interesse pela ciência, não tão técnico, mas no limiar dos assuntos enquanto assuntos públicos mais do que assuntos técnicos – embora eu domine algumas ferramentas que permitem entrar mais tecnicamente nessa linguagem, por ter feito alguns estudos nessa área. Agora, sempre percebi nos livros de biologia e de ciências uma série de desenhos que me interessaram e você vê isso um pouco nos diagramas, também podendo encontrar aí uma referência. Mas não tenho interesse tão especial na ciência, junto ao campo do conhecimento, como talvez a antropologia, filosofia, psicologia, por exemplo, me interessam. Acho mais interessante ter a ciência como um lugar a mais, entre tantos. Na minha prática acabei me envolvendo mais com filosofia, antropologia ou psicologia, campos com os quais travei mais diálogo, vamos dizer assim. Ou mesmo o campo da política, numa certa medida. E o interesse no campo da ciência está lá, vai continuar lá, mas sem nenhuma dominância especial.

Sobre o desenho da forma específica NBP e a ideia de contaminação: essa ideia de contaminação chegou a mim, em primeiro lugar, em um certo debate filosófico a partir do Baudrillard, via ciências humanas, ciências sociais. Ele falava muito em contaminação, nos anos 80, então essa palavra estava no ar. Você vê que ele também tem interesse no vocabulário da biologia. Quando se lê Deleuze e Guattari, Baudrillard, vê-se ali uma série de referências à ciência, assim como em vários outros autores. Então é um campo de interesse que se ampliou muito, se tornou bastante influente, no sentido do cruzamento de campos e disciplinas, etc.

O desenho da forma específica NBP aparece primeiro como uma imagem para memorização, que tem a ver não só com marcar o outro, mas também com sua transmissão, com sua distribuição. Aí identifiquei esse desenho com um vírus, não só por uma estratégica virótica de distribuição, mas também porque ele é uma pequena cápsula, um veículo que transporta algo, e a si próprio, para outros lugares. E claro que esse desenho também tem a ver com o trabalho que eu fazia antes, da marca Olho. De alguma maneira, é um outro tipo de olho. Mas não é só um olho, é um olho-ouvido. Depois comecei a perceber que essa marca, sobretudo quando inscrita naquele objeto que circula, de “Você gostaria de participar de uma experiência artística?”, é também um objeto de escuta. E aí se coloca uma frase que gosto, dos poetas concretos [Décio Pignatari]: o olhouvido ouvê.

 

Evento da Torre – Ricardo Basbaum, 1987. Intervenção no campus da Unicamp, Evento multimídia, Campinas. Fotografia: Ricardo Basbaum.

Carbono: “Você gostaria de participar de uma experiência artística?” é um trabalho que já dura vários anos e viajou por diversas partes do mundo. Como se constrói esta obra e sua rede de participantes?

Ricardo Basbaum:Esse projeto surge em 1994, em um momento em que ocorria a seguinte situação em meu trabalho: eu queria fazer objetos, objetos-esculturas, em vários materiais, sempre utilizando aquele desenho nas peças. Eu já havia feito uma peça em fórmica, uma peça em napa e espuma, uma peça em ferro… E aí fui fazer mais uma. Eu estava passando um período em Londres, com uma bolsa de estudos, e acabei fazendo essa nova peça na linha de objetos domésticos que você encontra por lá: aquelas xícaras e pires esmaltados, brancos, com as bordas azuis. Aí pensei: “vou fazer o próximo objeto com esse material, nas mesmas cores, como um utensílio.” Pensando, na verdade, de um modo mais amplo, tentando perceber a circulação desse objeto, como objeto doméstico que pudesse ser levado para casa e depois retirado – enfim, o projeto foi se formalizando. Ele existe tentando organizar a circulação dessa marca, transformada em objeto doméstico que pode ser utilizado, de fato. O objeto é um utensílio, é um container. E fui querendo perceber as diversas utilizações que esse objeto poderia ter, por participantes diversos, usuários, colaboradores (a nomeação da categoria de quem utiliza o objeto é sempre difícil de determinar, uma vez que a ideia de participação está um tanto saturada – mas acabo utilizando a referência básica de “participante”).

Você gostaria de participar de uma experiência artística? – Ricardo Basbaum [em progresso desde 1994. Objeto em ferro pintado, experiência, 125 x 80 x 18 cm. Particpação do Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos Brasília, 1998.

O interessante é que esse objeto surge já com um projeto de distribuição e de circulação. Surge com seu próprio diagrama, mediando e pensando a sua circulação. De alguma maneira, esse projeto é a realização daquelas questões que indiquei, acerca da marca – olhar aquela marca e ela ser transmitida com uma certa subliminaridade através da utilização do objeto. O uso desse objeto produzindo efeitos de memória, de intensidade de memória. Esse objeto circula, e aí se trata de pensar como essa circulação é mediada e compartilhada. Enfim, o vírus está de fato ali, organizado de maneira particular nesse objeto.

Carbono: E como se deu essa circulação da obra?

Ricardo Basbaum: Ela foi se fazendo aos poucos, demorou alguns anos para acelerar. Costumo dizer que o projeto está em sua quarta fase. A primeira fase, que durou mais ou menos de 1994 a 2000, foi a fase inicial em que eu tive que construir essa circulação. E costumo pensar na ideia de “construção de interesse”, é preciso construir um interesse. Essa circulação não pode ser forçada, ela só acontece a partir do momento em que há uma curiosidade e um interesse por parte de quem recebe esse objeto. Então o meu trabalho se dá na construção desse interesse, e essa construção é que leva alguém – um individuo ou um grupo, um coletivo ou eventualmente uma instituição – a ter interesse em receber esse objeto.

E aí isso vai sendo mediado com uma certa informalidade – não há contrato, há um acordo entre nós. E o trabalho até hoje se faz assim, com essa informalidade. É a partir do interesse que procuro organizar o deslocamento do objeto. E também procuro incentivar que cada pessoa que esteja com esse objeto passe-o para alguém – então isso vai criando uma rede. Esse objeto é um múltiplo, não é uma peça única, um múltiplo em tiragem aberta – sempre se pode fazer mais uma peça. Até hoje já foram produzidas trinta peças, em situações diferentes. Não há um original; enquanto múltiplo, cada peça é original. Não há diferença entre primeira, segunda e terceira, todas são rigorosamente iguais.

Carbono: Diversos trabalhos seus são potencializados e até construídos a partir de oficinas. Em alguns trabalhos recentes a voz e as palavras dos participantes são incluídas na obra final. Como se dá esta potencialização de singularidades? Existe um direcionamento neste corpo de participantes? O que define a forma final deste organismo múltiplo?

Ricardo Basbaum: Realmente, sempre fiz trabalhos assim, sobretudo a partir de duas séries que se baseiam nisso: uma série é aquela “eu-você: coreografias, jogos e exercícios”, e a outra série é a das “conversas-coletivas”. São duas séries de trabalho que só funcionam se forem produzidas através desses encontros de trabalho, oficinas ou dinâmicas de grupo. Tenho interesse nesse tipo de prática, por várias razões. Porque nesse tipo de prática a oficina transforma a relação do artista com o público, a recepção do trabalho, de uma maneira que gosto muito. Deixa de haver a relação artista-público, para se ter uma relação direta dentro da oficina, do artista com os colaboradores – há uma horizontalização no grupo de trabalho, que me interessa. E aí vejo esse grupo de trabalho como um microcosmo da relação artista-público, mas como um momento em que isso dá da melhor maneira que acho que seria possível. Ou seja, as pessoas compartilham da sua proposta de trabalho, colaboram com ela, contribuem e ajudam a pensá-la e transformá-la. Logo, é uma espécie de momento de recepção ideal do trabalho. E o trabalho é conjunto, feito de contribuições, um trabalho coletivo. Percebi que para o meu trabalho isso seria muito bom, muito bacana. E aí também se misturam vários outros modos de prática, como por exemplo o modo da produção de discurso, a conversa – a oficina é um lugar de leituras, de escrita, de trocas. A ideia de um curso, por exemplo, se dissolve no projeto do trabalho coletivo.

eu-você: coreografias, jogos e exercícios – Ricardo Basbaum. Camisas, serigrafia, ações performativas, dinâmica de grupo, Stuttgart, 2004.

Gosto muito desse formato pela intensidade que traz para o trabalho, a proximidade que se constrói no grupo, a possibilidade do trabalho coletivo ser plástica e discursiva – tem a leitura, a escrita, o trabalho conjunto, a utilização de diversos meios. E isso produz um resultado – sejam as ações e coreografias da série “eu-você”, sejam as “conversas-coletivas”. E esse resultado, em primeiro lugar, fica só no grupo, em uma certa camada, a partir da intensidade do trabalho coletivo, inscrito na memória no corpo de quem estava lá – e isso não se tem como representar. Tomo para mim que esses trabalhos, a rigor, até prescindem da exposição, em um primeiro momento – porque já aconteceram no grupo, com o grupo. Por um lado, isso já é mais do que suficiente: ter feito as ações em conjunto, ter gravado um vídeo ou ter feito a conversa coletiva em conjunto – isso já é suficiente para o trabalho ter acontecido. Mas para circular em uma esfera maior, para incluir um outro público – mais distante, com a recepção mais indireta, mediada pela situação expositiva – aí sim, tenho que fazer alguma coisa que contemple esse lugar. No caso das oficinas “eu-você”, é um vídeo que é apresentado em público. É como consigo propor uma outra experiência em relação àquela da oficina. E no caso das “conversas-coletivas”, ocorre a leitura pública e a gravação, que retorna para a instalação e pode ainda ser distribuída em CD ou a partir de qualquer suporte de áudio.

Essas oficinas me dão a chance de construir duas camadas de trabalho: uma dentro do grupo, de uma recepção que eu diria que é quase ideal, de troca, de compartilhamento, de colaboração; e outra, mediada pelo formato expositivo ou qualquer outro formato de distribuição em que posso lançar o trabalho para um público maior. E aí existe uma referência direta aos trabalhos do Allan Kaprow, com suas Activities – a última série que ele fez, nos últimos vinte anos de trabalho. Ele trabalhava com pequenos grupos, só que não estava interessado diretamente na documentação e nem na presença disso em uma esfera de recepção maior – ficava satisfeito só com o trabalho no grupo. Fazia estas propostas em grupo, que só ficavam ali – não gravava em vídeo, não documentava em fotos, nem nada. Estava interessado na intensidade das propostas apenas para o grupo de trabalho, isso era suficiente. As Activities do Kaprow são uma referência importante para mim.

 

eu-você: coreografias, jogos e exercícios – Ricardo Basbaum. Camisas, serigrafia, ações performativas, dinâmica de grupo, EXO, São Paulo, 2003.

Carbono: Como é a questão das singularidades? Quando você está trabalhando com o coletivo e com colaboração, eu imagino que devam ter múltiplas percepções sobre a obra, sobre a proposta. Como é lidar com todos estes pontos de vista?

Ricardo Basbaum: Nesses trabalhos tenho que pensar o grupo não como uma coisa que vá contra as singularidades, mas que é constituído pelas singularidades, não é? Costumo dizer que a série “eu-você: coreografias, jogos e exercícios” é um trabalho person-specific, e não site-specific, no sentido de que cada grupo é um grupo. Guattari tem uma expressão, “sujeito de grupo”, para indicar que cada grupo tem seu perfil. E escrevi um texto curioso, que saiu na revista Lugar Comum, [Lugar Comum nº30] que fala do vírus de grupo.

Enfim, pensar o grupo como um lugar em que as singularidades não sejam antagônicas à ambiência coletiva. E o trabalho só acontece se eu conseguir mobilizar, quer dizer, não sou só eu, se a gente conseguir constituir um grupo que mobilize os interesses múltiplos. E, de alguma maneira, as minhas propostas de trabalho estão ali para funcionar também como um aglutinador do que rola no grupo. E os trabalhos vão adquirindo um caminho para cá ou para lá, de acordo com os diferentes grupos.

Carbono: Como os diagramas e as arquiteturas se relacionam com estas interações? Como se constroem as formas e desenhos?

diagramas para coreografias – Ricardo Basbaum, 2004. Vinil adesivo, fundo monocromo, vista de instalação no Kunstlerhaus Stuttgart. Foto cortesia do Kunstlerhaus Stuttgart.

Ricardo Basbaum: Os diagramas são uma vontade de desenho, de fato, vontade de desenhar. São desenho e são também uma espécie de mapeamento, a cartografia de um processo, que não necessariamente já ocorreu, mas um processo que está ali em vias de ocorrer. É um modo de pensar, de fato, o funcionamento dos trabalhos em uma dinâmica de circuito, em uma dinâmica de suas mediações – de pensar a relação do eu com o outro, e seus mapeamentos. Uma maneira de ancorar certos processos de trabalho em locais específicos – frequentemente, alguns diagramas trazem referências arquitetônicas dos locais em que os projetos estão acontecendo. E também de afinar uma certa metodologia, uma terminologia – porque os diagramas têm palavras e linhas, há sempre um cuidado com o vocabulário que vai sendo construído.

São também poemas visuais, não é? Como eles têm essa linguagem gráfica que vai se desdobrando, você pode também pensar que eles conversam uns com os outros – um diagrama sendo acoplado a outro diagrama, em certa medida, como se todos fossem parte de um outro diagrama mais amplo, como se todos eles pudessem se acoplar. Ou eu poderia ainda desenhar diagramas intermediários para que fossem acoplados nos já existentes, enfim, os diagramas são também uma maneira de pensar o trabalho, de pensar minha prática, a cada vez. E ainda, claro, são superfícies gráficas, e nesse aspecto podem acontecer de muitos modos: em um pequeno folheto a ser distribuído, impressos em um cartaz, em uma página de revista ou em um livro, ou podem estar ali em escala arquitetônica, nas paredes, com aplicação de vinil adesivo, como tenho utilizado. São superfícies gráficas, podem estar em diferentes suportes, em diferentes meios de reprodução.

Carbono: E as arquiteturas das instalações? Como é esse desdobramento material para esses espaços de encontro? Porque a escolha do ferro, e da forma como se desenham os bancos e as entradas e as saídas?

Conversas & exercícios – Ricardo Basbaum, 2012. Ferro pintado, tecido, espuma, áudio, fones, 900 x 600 x 240 cm. Instalação na Bienal de Busan – Graden of Learning. Foto cortesia Bienal de Busan.

Ricardo Basbaum: O ferro acabou aparecendo pela sua estabilidade. O ferro, a grade, a malha de metal, dão uma estabilidade às peças e uma transparência. Estas são construídas de uma maneira muito básica: serrar, cortar, soldar, dobrar. É tudo muito básico, no sentido de que não existe uma habilidade específica acentuada, técnica e artesanal. São procedimentos muito simples, muito básicos de serralheria. E isso acabou se mantendo por um tempo, continua se mantendo em minha prática, no sentido de um procedimento técnico que tem sido adequado até agora para o que eu preciso – são esses mobiliários. Mobiliários em que sentido? Não tanto no utilitário, tanto que não existem exatamente uma mesa ou um armário; mas no sentido, até agora, de ter uma relação com o corpo: são lugares para sentar, para deitar, para atravessar, para saltar. Existe aí uma requisição do corpo para uma série de exercícios, que essas peças propõem. Além disso, esse material me permite a escala arquitetônica – existe um interesse nessa escala – no sentido mesmo da utilização das peças, de poder entrar, sentar, atravessar; as peças têm escala humana.

Agora, na exposição que fiz em A Gentil Carioca, em 2011, [“vibrosidades & vibrolução”] utilizei cimento e tijolos, para fazer paredes – não havia o ferro: meu interesse era fazer paredes, paredes que tinham pequenos bancos acoplados – as pessoas sentavam então naquelas paredes, que são membranas, para ouvir, para ter uma escuta, pois cada parede era associada a dois fones de ouvido, com acesso a diferentes grupos de gravações. Eram pontos de escuta, feitos com o mesmo material das paredes da galeria, fazendo extensões das paredes da galeria, concretamente. O meu interesse é nesse aparato físico, estável, que trabalha com a escala humana e que sirva para ser utilizado de fato.

vibrosidades&vibrolução – Ricardo Basbaum, 2011. Paredes, tijolos, vinil adesivo, arquivos de áudio, fones, 220 x 150 x 150 x 30 cm (parede 1), 220 x 150 x 200 x 30 cm (parede 2), 220 x 150 x 200 x 30 cm (parede 3). Instalação em A Gentil Carioca, Rio de Janeiro. Fotos Ricardo Basbaum.

Carbono: E a membrana?

Ricardo Basbaum: A membrana é um ponto de contato. Em meu trabalho, é uma dobra, um desdobramento, uma derivação que faço da “linha orgânica” de Lygia Clark. Essa membrana é a região de contato, de mediação com o outro, para criar um lugar intermediário, lugar intersticial de contato entre lugares diferentes. Então o trabalho todo acontece nesse lugar dos contatos, de contato com o outro. O outro e o trabalho são duas diferenças ali que estão medindo forças, negociando – e o trabalho acontece na intensificação desse lugar do contato, do encontro ou do desencontro, seja o que for. É o lugar de uma espécie de confrontação. Tenho utilizado a ideia da membrana, ou membranosa, como chamei a instalação que fiz em 2009, na Luciana Brito Galeria, em São Paulo. [“membranosa-entre (NBP)”] Em minha tese de doutorado, pensei também o arquivo como membrana – um arquivo vivo, que se faz no contato, no encontro, que afinal é o próprio projeto “Você gostaria de participar de uma experiência artística?”.

Carbono: Quais são os desafios e limites ao pensar a obra de arte enquanto um organismo vivo – moldado  por interações, expansões, contrações, mutações e desdobramentos incontroláveis? O que te mobiliza ao fazer arte no presente estado de coisas?

Ricardo Basbaum: De fato, a arte como organismo vivo é o que se deseja, que o trabalho tenha vida própria. Embora seja um organismo não-orgânico, é algo que tem a sua autonomia, no sentido de não ser totalmente devorado por todos, mantendo uma capacidade de escape e fuga. Na verdade, acho que é o que se deseja, que o trabalho tenha de fato essa autonomia não-orgânica e que vá construindo a sua vida própria e resistindo, não é? Que a gente precise fazer cada vez menos esforço para manter e que vá cada vez mais sozinho. Acho que em geral os artistas estão preocupados com isso. E isso demanda uma engenharia, com complexidade própria: um cuidado, um cálculo, um risco, tudo isso. Então, claro, deixar o trabalho ir acontecendo por sua própria conta e se transformando, é o que se quer que aconteça.

E quanto a isso se percebem etapas no trabalho. Neste momento, estou em uma etapa de organizar certos arquivos para, a partir de uma quantidade razoável de experiências realizadas, tentar perceber em que estágio esse organismo está e perceber o que se deve fazer. Talvez a administração de uma série de ações já realizadas que demandam uma espécie organização dos arquivos, para ajudar a entender o que tenho feito e o que tem sido esse processo. E, por outro lado, fazer com que isso aponte desdobramentos, para continuar acontecendo – porque sempre penso no trabalho que vou fazer como um trabalho que me abra uma porta para um próximo trabalho. Em todo trabalho que faço, estou pensando no outro que ainda não fiz – pois aquele trabalho não pode me fechar uma porta, tem que ser sempre um trabalho que me permita fazer um outro e um outro – então estou sempre pensando no mínimo dois trabalhos à frente. E eu trabalho por séries, não é? São as séries que vou organizando – e elas vão se desdobrando aos poucos, até que apareça uma outra série para complicar um pouco mais, para juntar com as outras. E aí vou tentando organizar como essas séries podem ir se desdobrando aqui e acolá.

E isso tudo também se dá enquanto tentativa de perceber como está sendo a recepção. A rigor, nunca se tem controle da recepção, o que é ótimo, mas é preciso tentar entender que recepção é essa – e procurar compreendê-la o melhor que se puder – porque isso vai ajudar nos próximos lances, nos próximos desdobramentos. Assim, procuro ter uma atenção para com a recepção; eu respeito essa recepção para perceber também um pouco como irei me mover em seguida.

 

***

 

RICARDO BASBAUM vive e trabalha no Rio de Janeiro. Artista, participa regularmente de exposições e projetos desde 1981. Individuais mais recentes incluem would you like to participate in an artistic experience? (Logan Center for the Arts, Chicago, 2012) e conjs., re-bancos*: exercícios & conversas (Museu de Arte da Pampulha, 2011). Autor de Além da pureza visual (Zouk, 2007), Ouvido de corpo, ouvido de grupo (Universidade Nacional de Córdoba, 2010) e Manual do artista-etc (Azougue, 2013). Professor do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

 

Entrevista realizada por Marina Fraga no dia 19 de março de 2013.